segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O Gato do Brasil - I

Arthur Conan Doyle escreveu a série "Round the Fire Stories" com o objectivo de manter Sherlock Holmes ausente das suas narrativas. Os leitores do "The Strand" reclamavam o mistério e a emoção a que Conan Doyle os tinha habituado. É assim que, entre Junho de 1898 e Maio de 1899, "The Strand" publica as referidas histórias (do nº 90 ao 101). O seu autor pretendeu com elas manter o interesse dos leitores, provando que era capaz de manter vivos o suspense, o enigma e o mistério, independentemente de Sherlock Holmes, entretanto... por ele "assassinado" (atirando-o, catarata abaixo, abraçado ao seu terrível adversário, o Professor Moriarty).

Estas "Histórias à Lareira", que encontrei interessantíssimas, são apresentadas pelo próprio Conan Doyle, do seguinte modo:

"No presente volume foram compilados contos de mistério, que podem ser lidos «à lareira», numa noite de Inverno. Seria, para mim, o ambiente ideal para tais histórias, se um autor pode escolher a hora e o local da leitura da sua obra, tal como o artista, que escolhe a iluminação e o local ideais para exibir um quadro seu. Contudo, se estes contos puderem dar alegria a alguém, em qualquer local e em qualquer momento, o seu autor dar-se-á por muito satisfeito."
A. C. D.

Bom... de facto, eu li-as em pleno Verão. No entanto, achei-as do tipo que suscita enorme curiosidade. E também horror, especialmente em certos casos. E nada impede que as releia em pleno Inverno, à lareira, tal como o seu autor propôs.
Nestas narrativas é bastante evidente a inspiração de Edgar Allan Poe, influência nunca negada por Conan Doyle.



As histórias são todas interessantes. No entanto, há algumas que se destacam. É o caso da história intitulada "O Gato do Brasil". Esta narrativa pareceu-me verdadeiramente aterradora, com um suspense muito bem conseguido até ao fim. A construção da história e o seu desenlace pareceram-me, particularmente, aspectos muito bem conseguidos. Por outro lado, recria uma situação absolutamente terrível.
Julgo valer a pena transcrevê-la pouco a pouco, na medida em que não há nenhuma destas histórias que se possa considerar de grande extensão.

A História do Gato do Brasil

«O pior que pode acontecer a um jovem com grandes esperanças, exigências de gosto requintado, numerosas relações na alta aristocracia, é não ter dinheiro nem uma profissão que lhe permita ganhar dinheiro. Foi o que sucedeu comigo. Com o seu optimismo ingénuo, meu pai - um excelente homem - depositava tal confiança na riqueza e benevolência do seu irmão solteiro, Lord Southerton, que não me preparou para ganhar a vida. Julgava que, se eu não herdasse as vastas propriedades de Southerton, não seria difícil arranjar-me um cargo diplomático, carreira que constitui o derradeiro recurso para todos aqueles que, como eu, são oriundos de uma classe privilegiada. Meu pai morreu antes de saber como se enganara. Nem meu tio mostrou o menor interesse pela minha pessoa, nem o Estado me abriu as suas amplas portas. De quando em quando, alguns faisões ou uma cesta de lebres faziam-me recordar o facto de eu ser o herdeiro de Otwell House, uma das ricas propriedades do país. Durante esse tempo, não casei e habitava num apartamento em Grosvenor Mansions, sem outra ocupação além do tiro aos pombos e do jogo de pólo, em Hurlingham. A cada mês que passava, tornava-se mais difícil, para mim, acalmar os meus credores. O espectro da ruína ia tomando formas definidas.
O que mais me fazia sofrer, nesse estado de crescente pobreza, era o contraste com os meus parentes ricos, mesmo pondo de parte a enorme fortuna de Lord Southerton. Depois dele, o parente mais próximo era Everard King, sobrinho de meu pai e meu primo direito, que levara uma vida aventurosa no Brasil e agora regressara a Inglaterra para gozar a fortuna que acumulara. Ignorávamos como havia enriquecido; mas devia ter muito dinheiro, porque, de outro modo, não poderia ter adquirido a propriedade de Greylands, perto de Clipton-on-the-Marsh, no condado de Suffolk. Durante o primeiro ano em que ali residiu, meu primo ignorou a minha existência, tal como o fizera o meu velho tio avarento, Lord Southerton. Certo dia de verão, contudo, recebi, para minha grande alegria, uma carta dele, convidando-me a passar uma temporada em Greylands Court. Eu estava à espera de outra coisa - um convite para me apresentar ao Tribunal de Falências -, de modo que o seu bilhete foi providencial. Se me relacionasse cordialmente com aquele parente desconhecido, podia safar-me da falência, pois ele nunca me deixaria chegar a tal extremo, quanto mais não fosse por atenção à honra da família. Com este raciocínio em mente, ordenei ao meu criado que preparasse as malas. E, nessa mesma tarde, parti para Clipton-on-the-Marsh.
Depois de uma paragem em Ipswich, um trem local deixou-me numa pequena estação deserta, situada numa região de pastagens, que atapetavam de verde os morros e desciam pelos vales, ao fundo dos quais serpenteava um rio sinuoso. Não encontrei qualquer carruagem à minha espera (vim a saber, depois, que o meu telegrama se atrasara) e aluguei uma, na estalagem local. O cocheiro desfez-se em louvores à minha família e soube, por ele, que Everard King já era muito célebre naquela parte do país. Homem de uma inesgotável benevolência, mandara construir escolas, oferecera quantias avultadas a obras de caridade e abrira as suas matas ao povo. Tanta generosidade só podia ser explicada, segundo o cocheiro, por particular uma ambição de aceder ao Parlamento.



A dada altura, a minha atenção foi desviada da lengalenga do cocheiro pela aparição de uma bela ave, empoleirada num poste telegráfico. A princípio, pareceu-me um gaio; o tamanho e o brilho da plumagem, porém, mostraram-me que me enganara. O cocheiro contou-me que pertencia ao meu parente, cuja mania era a de manter, nas suas propriedades, animais exóticos que trouxera do Brasil. Pouco depois, ao transpormos os portões de Greylands Park, tive a confirmação daquela excentricidade. Alguns veados pintalgados, um javali, um tatu e uma estranha espécie de texugo, com patas voltadas para dentro, chamaram-me a atenção, entre muitos outros animais, à solta, no parque.
Mr. Everard King viera postar-se no patamar da escadaria, atraído pelo barulho da carruagem, que lhe revelara, por certo, a minha chegada.
Era um homem atarracado, dos seus cinquenta e cinco anos, com um rosto redondo, tisnado pelo sol dos trópicos e vincado por rugas profundas. Com o seu fato branco, à moda colonial, e o chapéu panamá, que usava puxado para trás, encontrava-se a fumar um charuto. Era um desses indivíduos cuja aparência evoca países tropicais e casas com varandas, destoando da imensa mansão de estilo britânico, construída em pedra, com alas maciças e uma entrada orlada de pilares altos.
- Minha querida - exclamou, voltando-se para o interior, - aqui está o nosso hóspede! - Depois, dirigiu-se-me: - Seja bem-vindo a Greylands! Estou encantado por conhecê-lo, primo Marshall. Foi muito gentil da sua parte ter vindo honrar com a sua presença este recanto desértico.
O seu acolhimento não podia ser mais cordial, o que me pôs imediatamente à vontade. O mesmo não sucedeu em relação à esposa, uma mulher alta e pálida, que se mostrou fria, quase rude, e só apareceu porque o marido a chamou. Percebi que era de origem brasileira, embora o seu inglês fosse excelente, e desculpei-lhe os modos, convencido de que ignorava os nossos costumes. Contudo, não tentou sequer esconder, nem de início, nem mais tarde, que não me considerava bem-vindo naquela mansão. Se bem que, em regra, as suas palavras fossem corteses, podia ler-lhe, nos olhos escuros e expressivos, o que lhe ia na alma - a ânsia de que eu regressasse a Londres, quanto antes.
Como as minhas dívidas houvessem atingido o limite, a esperança de salvação que depositava naquele parente fez-me fechar os olhos à hostilidade da esposa. Não podia dar-me ao luxo de me sentir melindrado pela sua frieza. Quanto a meu primo, tudo fazia para tornar agradável a minha visita. O meu quarto era soberbo e quase me implorou que lhe dissesse como poderia ser ainda mais amável para comigo. Senti o ímpeto de lhe dizer que poderia fazê-lo se me desse um cheque em branco - mas como era cedo para abordar assuntos dessa ordem, calei-me. O jantar não podia ser mais opíparo e, mais tarde, enquanto fumávamos charutos cubanos e sorvíamos café, moído especialmente numa das suas plantações, concluí que os elogios do cocheiro eram plenamente justificados: não parecia possível existir um homem mais afável do que o meu primo.
(continua...)

(Imagens: recolhidas na pesquisa de imagens do Google - autores desconhecidos)