segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Anatomias

Isto é um cadáver exquis que não é um cadáver exquis

O corpo está deitado e abandonado à sorte dos estudiosos de anatomia. Começam a cortar e a expôr o interior esventrado. Mas o corpo pensa e sabe o que lhe estão a fazer. Um dos homens pretende dispôr os orgãos principais segundo uma nova ordem: coração à direita, pulmões ao nível inferior, perto da anca e do seu osso recurvado, junto à bacia. Os outros não permitem tal heresia. O resultado seria monstruoso e respirar considerar-se-ia uma função inferior. O estômago, segundo ele ainda insistiu, bem ficaria colocado a acompanhar a curva do pescoço, no exacto ponto de deglutir. Argumentaram os outros com o desequilíbrio estético evidente a não reproduzir, esse princípio básico e tão sagrado relativo às coisas humanas.


O corpo olha-se e entreolham-se todas as suas partes. Deitado está, mas eis que se levanta erguendo a mão num suspender da polémica. Não sabe o que se segue. Ninguém sabe, a bem dizer. Ele é um cadáver exquis que depende dos outros para o ser. Ergue a outra mão agitando um livro de instruções. Recomendo que o consultem. É urgente introduzir ordem no meu corpo tristemente abandonado ao caos. Agitado, o livro desprende as suas folhas esvoaçantes à roda do corpo, entretanto, de novo deitado. E os homens correm, também eles agitados, a recolhê-las...

O corpo jaz esquecido e abandonado - singularmente exquis.



Imagem: Rembrandt, A Lição de Anatomia

2 comentários:

Manuela Freitas disse...

Que interessante divagação! Tudo pode acontecer, a manipulação é possível, mas é mais consolador saber que os corpos, seguem um livro de instruções, enquanto vivos e, nesse caso um cadáver que reclama, ressuscitou!...
Beijinhos,
Manuela

Ana Paula Sena disse...

Obrigada, Manuela :)

...também pela sua leitura e interpretação.

Beijinhos de volta.